15 de maio de 2007

DE “PRATO CHEIO”

Conta-se que os índios Mongoiós habitavam o espaço onde surgiu o povoado de Santa Cruz. E o surgimento do povoado deu-se “devido às infiltrações de Bandeirantes, que desceram pelo Planalto da Conquista e chegaram a habitar por um longo período*”. Naqueles tempos, por volta de 1810 a 1830, “a necessidade de desbravar as regiões opostas e os obstáculos criados pelo Rio Pardo — que na época tinha um enorme volume de água — fizeram os usuários que vinham do sul com destino ao norte e vice-versa, criar literalmente um porto, com balsa para travessia. A escolha do referido lugar deu-se devido a enorme quantidade de gameleiras bicentenárias que abrigavam às sombras os bandeirantes, tropeiros, caixeiros-viajantes que buscavam comercializar e enriquecer com as devidas descobertas, trocas e vendas de produtos*”. Deixando assim influências tanto na culinária como n’outros costumes locais.

No entanto, tão distante de ter suas tradições preservadas ou estudadas encontra-se o município de Cândido Sales - Ba. Cidade muito jovem politicamente, mas que ecoam, no entorno do vale do Rio Pardo, antigas histórias dos seus primeiros habitantes. Ecoam surdamente, uma vez que os relatos encontrados são parcas linhas ou breves citações. E quando o assunto é sobre culinária, mais complicado fica.

Porém, pode-se afirmar que a base de sua culinária é a mesma da nacional: com origem indígena, africana e européia. É comum o uso da farinha de mandioca, o feijão com arroz, a feijoada, a carne charqueada ou jabá, o acarajé e comidas à base de milho (como o mingau, a pamonha, o bolo, a broa).

Contudo, não se tem em Cândido Sales nenhum órgão preocupado em resgatar a memória de seu povo. Ou, até mesmo, com o cuidado de registrar seus costumes. Infelizmente, a Secretaria de Cultura prefere alimentar a inércia dos modismos de outros recantos, esquecendo-se das tradições locais. Insistem no fugaz mundo da sanha vaidosa de alguns políticos. Ambos, sem nenhuma preocupação maior do que alimentar o próprio ego.

Assim, passam os anos e ficam as interrogações:
— Onde o Boi de Janeiro foi parar?
— Em Belém do Pará.
— Quando será o Terno de Reis?
— O tocador não sabe o mês.
— Então, onde fica o teatro?
— No legislativo, às quatro.
— Oxente! E o Centro Cultural?
— Ora, é lá no hospital.

Seria um “prato cheio” para Gregório de Matos. Afinal, já está passando da hora do cidadão candido-salense repensar suas origens e tentar preservar o que ainda lhes resta. Pois, há o sério risco de perder sua identidade, como ocorreu com os Mongoiós massacrados pela cultura da intolerância e da ganância.
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*Trecho em negrito de um texto encontrado na Biblioteca Municipal
de Cândido Sales - Ba de autoria deconhecida
que narra o surgimento do Povoado de Santa Cruz
(hoje, Porto de Santa Cruz).

7 de abril de 2007

Crônica de Quaresma - "Farinha Pouca, Meu Pirão Primeiro"

Cândido Sales - BA, quarta sexta-feira de março.

Seria mais um dia como tantos em que o cronista cumpre com a velha rotina diária de, logo cedo, ir ao mercado comprar o pão e o leite — inclusive, o tradicional peixe dos dias da quaresma. Pelas ruas, os mesmos pardais despertando a manhã; o cachorro do vizinho latindo, e o carteiro ensaiando uma fuga estratégica ou tentando se proteger da fera — isto é, se não o tivessem demitido do seu ofício, obrigando a população a formar imensas e morosas filas no correio para pegar suas missivas e outras correspondências.

Em frente à Igreja Matriz, os caminhões aqueciam seus motores. Uns poucos partiam para o trabalho. Mais adiante, um gari esforçava-se para não perder o horário novamente. Na esquina do Banco do Brasil, o senhor que vende café e cachaça expõe suas mercadorias. Ao seu lado, duas senhoras esperando o momento certo para oferecer cosméticos e cobertores aos aposentados, enquanto um outro senhor aproxima-se para posicionar seu carrinho de vender água de coco. Tinha tudo para ser apenas mais um dia... Se não fosse olhar inquieto do cronista, que chegaria em sua casa e tomaria o café com leite acompanhado de pão amanteigado; depois, sentado no banco da pracinha, daria continuidade à sua leitura do “Sobrados e Mucambos – a continuação de Casa-Grande & Senzala” numa tentativa de entender certos costumes brasileiros através da visão de Gilberto Freyre. Mas, ao fazer o percurso de volta, observa dois sujeitos:

— Pó! Você comeu tudo!
— Oxente! Mas era só um punhado de feijão com arroz. Num deu nem para tapar o buraco do dente.
— Só que eu ainda ‘tava lá ponte tentando conseguir mais algum.
— Calma! Agente pede mais.
— Agora é sua vez... E a farinha?
— Acabou.
— Cara, ‘tô numa fome de ingulir uma vaca inteira!
— Tome aqui. É o último pedaço de pão.

Foi como se tivesse dado um tapa na face do cronista para refletir sobre aquela cena. Ou, talvez, sobre o seu comportamento diário perante o semelhante; e, ainda, sobre nosso comportamento político, costumes, religiosidade ou a miséria humana. Pois, afinal de contas, era quaresma, e ele seguia, rigorosamente, a tradição herdada pela sua família de comer o sagrado peixe nas sextas-feiras até o dia da Paixão de Cristo. No entanto, diante dos seus olhos, duas pessoas não tinham o que comer.

De imediato, vieram-lhe lembranças das histórias de sua avó sobre a origem da culinária brasileira. Entre outras, as que mais marcavam se referiam sobre os primórdios costumes alimentícios dos nossos ancestrais. Uma, interessante, é sobre a morte de D. Pedro Fernandes Sardinha, jesuíta devorado pelos índios Caetés, onde ela descrevia técnicas do moqueado desses antepassados. E, sobre os primeiros contatos com os índios, relatava ainda a repugnância dos portugueses com relação ao cauim — bebida inebriante e deliciosa produzida pelos povos daqui, mastigando vários frutos, principalmente o caju, e cuspindo num vasilhame para ocorrer o processo natural de fermentação. Alguns lusitanos até vomitavam. Esquecendo que, eles próprios, para produzirem seu requintado vinho, utilizavam-se dos pés para esmagar as uvas.

Vendo a discussão dos dois companheiros de rua, recordou ainda do adágio popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”. “A farinha de mandioca era um dos alimentos que os bandeirantes costumavam levar durante suas viagens pelo interior do Brasil. Quando o estoque de comida estava acabando, o prato principal era peixe com pirão. Nesse momento, o chefe da expedição usava a força do cargo.” Daí o surgimento do ditado presente até os dias de hoje. No caso dos dois, faltavam-lhes a farinha e o peixe.

Diante de tal situação, pensou: “aquele que não sente no estômago a ausência do alimento prefere guardar na consciência o dito ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’.”

Assim, pensam aqueles que dormem sobre a miséria deste país e fingem sentir a fome de quem não teve ou não tem a oportunidade de saborear dos privilégios públicos, ou melhor, seus direitos mínimos de sobrevivência. Enquanto o político nacional — em seu status de legislador da cidadania — prefere promover altos salários para ele próprio e seus companheiros, esquecendo-se da maior parte da fatia da população brasileira.

Então, nessa briga, ficamos como o peixe do cronista para cumprir a tradição, o feijão com arroz dos dois cidadãos que não tem onde morar nem o que comer e o canibalesco prato dos Caetés. Revivendo e convivendo num estado de apenas “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Desse dia, então, nenhum outro teve mais a mesmice daqueles dias de março, onde, ao cumprir com sua rotina, o cronista via os mesmos pardais e o carteiro defendendo-se do cachorro do vizinho, enquanto dois cidadãos disputavam um punhado de feijão com arroz.